O sotaque das mineiras deveria ser ilegal, imoral ou engordar

Publicado por Tv Minas em 16/01/2019 às 21h54

Se tudo que é bom tem um desses horríveis efeitos colaterais, como é que o falar lindo (das mineiras) ficou de fora?

 

*O Sotaque das Mineiras. Texto de autoria de Felipe Peixoto Braga Netto.

Crônica extraída do livro "As coisas simpáticas da vida", Landy Editora, São Paulo (SP) - 2005, pág. 82.

 

Mineira deveria nascer com tarja preta avisando: ouvi-la faz mal à saúde. Se uma mineira, falando mansinho, me pedir para assinar um contrato doando tudo que tenho, sou capaz de perguntar: só isso? Assino achando que ela me faz um favor.

 

Eu sou suspeitíssimo. Confesso: esse sotaque me desarma. Os mineiros têm um ódio mortal das palavras completas.

 

Preferem abandoná-las no meio do caminho, não dizem: pode parar, dizem: 'pó parar'.

 

Não dizem: onde eu estou?, dizem: 'ôncôtô'.Os não-mineiros, ignorantes nas coisas de Minas, supõem, precipitada e levianamente, que os mineiros vivem lingüisticamente falando, apenas de uais, trens e sôs.

 

Digo-lhes que não (...) Mineiras não usam o famosíssimo 'tudo bem'.Sempre que duas mineiras se encontram, uma delas há de perguntar pra outra:- 'Cê tá boa?'.Para mim, isso é pleonasmo. Perguntar para uma mineira se ela tá boa é desnecessário.

 

Há outras. (...) - 'Aqui', não vou dar conta de chegar na hora, não. Esse 'aqui' é outro que só tem aqui (...) Que os mineiros não acabam as palavras, todo mundo sabe.

 

É um tal de 'bonitim', 'fechadim', e por aí vai.Já me acostumei a ouvir: - E aí, 'vão?'. Traduzo:- E aí, vamos?Não caia na besteira de esperar um 'vamos' completo de uma mineira.Não ouvirá nunca.

 

Eu preciso avisar à língua portuguesa que gosto muito dela, mas prefiro, com todo respeito, a mineira. Nada pessoal.Aqui certas regras não entram. São barradas pelas montanhas.Por exemplo, em Minas, se você quiser falar que precisa ir a um lugar, vai dizer:- Eu preciso 'de' ir. Onde os mineiros arrumaram esse 'de', aí no meio, é uma boa pergunta. Só não me perguntem. Mas que ele existe, existe (...).

 

Aqui em Minas ninguém precisa ir a lugar nenhum. Entendam... Você não precisa ir, você precisa 'de' ir. Você não precisa viajar, você precisa 'de' viajar. Se você chamar sua filha para acompanhá-la ao supermercado, ela reclamará: -  Ah, mãe, eu preciso 'de' ir? No supermercado, o mineiro não faz muitas compras, ele compra um 'tanto de coisa'.O supermercado não estará lotado, ele terá um 'tanto de gente' (...) Entendeu?

 

Se, saindo do supermercado, a mineirinha vir um mendigo e ficar com pena, suspirará: - 'Ai, gente, que dó'.

 

É provável que a essa altura o leitor já esteja apaixonado pelas mineiras (...) Para uma mineira falar que algo é muitíssimo bom vai dizer: - 'Ô, é sem noção'.Entendeu? É 'sem noção!' Só não esqueça, por favor, o 'Ô' no começo, porque sem ele não dá para dar noção do tanto que algo é sem noção,entendeu? Capaz...Se você propõe algo ela diz: - 'Capaz'!! !Vocês já ouviram esse 'capaz'? É lindo (...) Já ouviu o 'nem...?' Completo ele fica: - Ah, 'nem' (...)

 

A propósito, um mineiro não pergunta: - Você não vai? A pergunta, mineiramente falando, seria: - 'Cê' não anima 'de' ir? Tão simples. O resto do Brasil complica tudo.

 

É, ué, cês dão umas volta pra falar os trem (...) O plural, então, é um problema. Um lindo problema, mas um problema. Sou, não nego, suspeito.

 

Minha inclinação é para perdoar, com louvor, os deslizes vocabulares das mineiras. Aliás, deslizes nada. Só porque aqui a língua é outra, não quer dizer que a oficial esteja com a razão. Se você, em conversa, falar: - Ah, fui lá comprar umas coisas...-  'Que' s coisa?' - ela retrucará .O plural dá um pulo (...) E se você acusar injustamente uma mineira, ela, honrosa,confidenciará: - Ele pôs a culpa 'ni mim'.

 

A conjugação dos verbos tem lá seus mistérios, em Minas. Ontem, uma senhora docemente me consolou: 'preocupa não, bobo!'. E meus ouvidos, já acostumados às ingênuas conjugações mineiras, nem se espantam. Talvez se espantassem se ouvissem um: 'não se preocupe', ou algo assim.

 

A fórmula mineira é sintética. E diz tudo. Até o tchau, em Minas, é personalizado. Ninguém diz tchau pura e simplesmente. Aqui se diz: 'tchau pro cê', 'tchau pro cês'. É útil deixar claro o destinatário do tchau. Então neh, as mineiras são trem bão demais sô....

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